domingo, 3 de agosto de 2014

Pedra Riscada - "Place of Happiness"

Há alguns anos atrás fiquei sabendo da existência da Pedra Riscada através de notícias da conquista de uma linha impressionante nomeada "Place of Happiness", o lugar da felicidade. Só isso já era o suficiente para gerar o interesse em muitos escaladores.

Pedra Riscada vista pela face nordeste. Foto: Bernardo Biê.

Passado algum tempo vários grupos tentavam repeti-la, entre sucessos e fracassos alguns deixavam suas experiências registradas em relatos empolgantes, o que motivava ainda mais outros a tentar o feito de escalar seus 850 metros de puro granito.

Sérgio Ricardo aos pés da Pedra Riscada com a via
 "Place of Happiness ao fundo. Foto: Bernardo Biê.

Desde então alimentamos essa vontade e começamos a planejar nossa tentativa, mas os caminhos da vida pareciam não colaborar para que de fato isso acontecesse. Foram 3 anos coletando informações, combinando, planejando, alimentando essa semente, mas ainda sim na hora "h" alguma coisa impedia nosso avanço em direção a tão esperada montanha.

De repente, meio que na marra, as coisas foram se encaminhando e em 1 semana tudo estava pronto para nossa partida à cidade de São José do Divino, nordeste de Minas Gerais, quase na divisa com o Espirito Santo.

Os escaladores Lucas Marques, Bernardo Biê e Sérgio Ricardo 
durante a repetição da via "Place of Happiness". Foto: Lucas Marques.

Tive a sorte de me juntar a dois escaladores que admiro, e ainda mais sorte em poder compartilhar essa experiência com eles. Por coincidência dois mineiros radicados no Rio de Janeiro, Lucas Marques e Sérgio Ricardo. Todos super motivados a fazer essa escalada juntos, esse foi o combustível que precisávamos para alcançar esse cume. Estava escalando desde o começo do ano em parceria com o Sérgio, fizemos uma boa sequência de escaladas, mas fazia algum tempo que não via o Lucas, já não me lembrava a última vez que escalamos juntos mas sabia que ele estava afiado e sedento por essa oportunidade. 

Bernardo Biê no 1o diedro da via "Place of Happiness". Foto: Lucas Marques.

Nossa estratégia inicial era bem diferente da que adotamos. A princípio o mais importante era ir leve e ser ágil para tentar o cume em um dia, mas concordamos que seria mais divertido passar mais tempo na parede, desfrutar dos detalhes que a via poderia nos oferecer. Logo essa opção ganhou força e decidimos levar o acampamento para a parede.




Sérgio Ricardo guiando o 2o diedro , 8b/c br (7b/+ fr). Foto: Bernardo Biê.

Juntamos tudo que era preciso, com algumas exceções, e partimos de ônibus para Belo Horizonte encontrar o Lucas e seguir de lá de carro para São José do Divino. Depois de quase 14 horas total de viagem finalmente chegamos aos pés da Pedra Riscada de frente para a face nordeste, já tarde da noite decidimos bivacar na beira da estrada. O céu estava tomado por estrelas e não se passava nem 5 minutos sem que uma estrela cadente cruzasse sobre nossas cabeças. Claro, todos os pedidos eram os mesmos, fazer o tão desejado cume.

Lucas Marques guiando o 3o diedro, um dos cruxs da via 9a br (7c fr). Foto: Bernardo Biê.

Como escalaríamos com suprimentos e equipamentos para mais de um dia na parede, nossa estratégia era descansar um dia antes de começar a empreitada. A ansiedade era quase incontrolável, ainda nos seguramos bastante mas às 15h começamos as primeiras 6 enfiadas com o objetivo de deixar o haulbag e as mochilas no final do primeiro terço da parede. Às 19h começamos a descer com o objetivo concluído.

Bernardo Biê guiando a saída do último diedro, um dos cruxs da via 8c (7b+ fr). Foto: Sérgio Ricardo.

A via Place os Happiness está localizada na face nordeste da Pedra Riscada e conta com 18 enfiadas, na sua maioria de 60 metros de extensão cada uma, com graduações que variam entre o 4º grau e o 9º grau brasileiro. É uma via exigente, tanto no aspecto físico quanto no psicológico, pois além da dificuldade técnica ela também oferece alguns lances onde a possibilidade de queda não é muito agradável nem muito menos uma opção. Todos esses elementos atraiam ainda mais a gente e nesse embalo acordamos bem cedo para, ai sim, começar a escalar a parte exigente da parede.

Fomos revezando as guiadas e içando todo suprimento com o objetivo de alcançar o topo da 11ª enfiada. Enquanto um guiava outro participava e um jumareava, num esquema bem coordenado subimos pesados porém rápidos. Pelas informações que tínhamos ali, no topo da 11ª enfiada, era o melhor lugar para montar o portaledge e passar a noite. Realmente, naquele ponto da parede existem proteções que foram deixadas pelos conquistadores para esse fim, tudo indica que eles mesmos tenham permanecido ali por alguns dias enquanto conquistavam a via.

Os três escaladores no acampamento suspenso durante 
a manhã do segundo dia. Foto: Lucas Marques.

Para alcançar esse objetivo que traçamos tivemos enfiadas difíceis mas ao mesmo tempo incrivelmente lindas. Inacreditável como existem boas agarras entre alguns lances difíceis e algumas vezes desprotegidos. A via se mostrou ser totalmente o nosso estilo, a cada enfiada que vencíamos ganhávamos força e a vibração estava contagiante!

Ainda tenho as imagens na cabeça do lindo pôr do sol ao fundo enquanto montávamos e organizávamos nosso acampamento suspenso.


Apesar da noite estar super estrelada o vento era bem forte ao ponto de incomodar, não tivemos uma boa noite de sono. Dormir 3 pessoas em um equipamento feito para 2 pessoas não foi nada agradável, mesmo assim faltava apenas um terço da parede e as enfiadas mais duras tinham ficado para trás, tudo indicava que chegaríamos ao cume.

Acordamos bem cansados de trabalhar no içamento dos nossos suprimentos e ainda revezar as guiadas principais da via. Sem deixar a bola cair fomos tocando pra cima até que uma chuva inesperada nos alcançou depois de termos escalados 3 enfiadas, as mais difíceis do dia. Parecia que era o fim da nossa tentativa, mas de repente ela parou. Ainda confiante continuamos mais um pouco até ela voltar com tudo. E assim fomos, vencendo enfiada por enfiada entre o vai vem da chuva. No fundo torcia para que as últimas enfiadas não estivessem molhadas, pois deveria ser a parte mais exposta, já que a parede perdia inclinação drasticamente se tornando uma rampa nos últimos 100 metros, com pouquíssimas proteções. Pois bem, a chuva parou totalmente como que dando um sinal de que os Deuses nos permitiriam pisar no cume nesse dia. Dito e feito, misticamente tudo parou, a chuva, o vento, o tempo parou para os três pobres mortais explodirem de alegria ao alcançar o tão desejado cume da Pedra Riscada. Enquanto comemorava o feito, um lindo arco íris nos abençoava ao fundo. 

Sérgio Ricardo, Bernardo Biê e Lucas Marques no cume da Pedra Riscada depois 
de escalarem a via "Place of Happiness". 
Foto: Lucas Marques.

Tudo indicava que nossa descida  seria menos difícil do que pensávamos, já que tudo conspirava a nosso favor. E foi exatamente o que aconteceu, tudo deu tão perfeito que ao retornar para o portaledge decidimos recolher acampamento e descer imediatamente da montanha. Depois de rapelar por volta de 7 horas seguidas chegamos na base da via, por sorte apenas na última puxada de corda do último rapel, já com os pés no solo, a corda prendeu e tivemos que escalar uma parte da enfiada para retira-la.

O show da natureza durante a descida do cume. Foto: Lucas Marques.

As 23h da noite o jantar já estava sendo feito e o banho tomado, pareciam 3 crianças que acabavam de chegar do parque de diversões. Era inacreditável como tudo tinha dado tão certo, a sensação era de que uma verdadeira benção havia sido lançada sobre nós, principalmente porque no dia seguinte o tempo fechou e não parecia ser uma boa idéia estar na parede diante do clima que se formava. Aproveitamos para conhecer as outras faces da Pedra Riscada dando a volta por toda sua circunferência. No trajeto fomos até a cidade de São José do Divino guiados pelo nosso amigo Edimilson Duarte, ilustre cidadão da cidade e o maior incentivador das atividades de montanha na região. Edimilson é dono do Recanto Pedra Riscada, onde a maioria dos escaladores se abrigam, além de ser um dos maiores conhecedores da região, ele é o responsável pela divulgação da escalada e junto de escaladores mineiros está organizando o primeiro guia de escaladas da região.

Não vejo como poderia ter sido melhor, graças aos Deuses da Montanha e as diversas informações que conseguimos ao longo do tempo que planejamos fazer essa escalada com êxito e em segurança. Desde os relatos de outras pessoas que vivenciaram diferentes experiências e as divulgaram, até amigos que pessoalmente nos deram dicas sobre detalhes da via, todas as informações foram úteis e importantes, algumas pontualmente primordiais.

Nossos agradecimentos a: Silvio Neto (www.verticale.com.br), Daniel Araújo (www.rocksinrio.com.br), Flávio Daflon (www.ciadaescalada.com.br), Sergio Tartari (www.refugiodasaguas.com.br), Leonardo Mogli, Felipe Cabeça (www.4climb.com.br), que nos deram as dicas sobre a escalada e os lances importantes da via; ao Pedrinho da Adrena (www.adrenaesportes.com.br) por indicar as estradas e o melhor caminho; Edimilson Duarte e a Prefeitura de São José do Divino; e a todas as pessoas que de alguma forma nos ajudaram nessa empreitada.